Mais de 2.500 mulheres residentes em Portugal interromperam a gravidez em Espanha entre 2019 e 2023, segundo dados reunidos num estudo da Amnistia Internacional (AI) Portugal, que será apresentado esta terça-feira, em Lisboa. A investigação denuncia várias barreiras persistentes ao acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) em território nacional, apesar da sua legalização há 17 anos.
O estudo revela que, no período em análise, 2.525 mulheres portuguesas recorreram a serviços espanhóis para realizar uma IVG, o que representa uma média anual de cerca de 500 casos. Em dois terços das situações, a interrupção foi feita após as 10 semanas de gestação, o limite legal em vigor em Portugal, mas ainda dentro do prazo permitido pela legislação espanhola, que aceita o procedimento até às 14 semanas.
Além do recurso ao estrangeiro, o relatório destaca que, desde a entrada em vigor da lei em 2007 até 2024, as autoridades registaram 159 denúncias por alegados “crimes de aborto”. Desse total, 58 arguidos chegaram a julgamento, resultando em 33 condenações e 20 absolvições. A AI sublinha que não é possível determinar, com os dados disponíveis, se os condenados eram grávidas, profissionais de saúde ou terceiros envolvidos.
A Amnistia Internacional defende a descriminalização total do aborto, considerando que a atual legislação penaliza desproporcionalmente populações marginalizadas — nomeadamente jovens, pessoas com baixos rendimentos e baixo nível de escolaridade — e contribui para o aumento de práticas ilegais e inseguras.
Portugal tem, atualmente, um dos prazos legais mais curtos para a realização da IVG na Europa, a par de países como a Croácia, Irlanda e Turquia. A maioria dos países europeus permite o procedimento até às 12 semanas. Embora a idade gestacional média para abortos realizados em Portugal em 2023 tenha sido de 7,4 semanas, o relatório argumenta que o limite das 10 semanas continua a excluir muitas pessoas que não conseguem aceder ao serviço dentro do prazo estipulado.
O estudo aponta ainda desigualdades territoriais no acesso à IVG. Nos Açores, por exemplo, apenas 14 interrupções foram realizadas em 2023, todas no Hospital da Horta. Em 2025, a situação agravou-se: segundo a AI, já não existem médicos disponíveis para realizar o procedimento nos hospitais da Horta e da Terceira. Também no Alentejo, das 696 IVG solicitadas, apenas 27% foram realizadas em unidades da região.
O relatório revela ainda que 71,3% dos ginecologistas e obstetras do Serviço Nacional de Saúde (SNS) manifestaram objeção de consciência, recusando-se a realizar abortos, o que compromete ainda mais a universalidade do acesso.
Entre as recomendações dirigidas às autoridades portuguesas, a Amnistia Internacional propõe o alargamento ou eliminação do atual limite gestacional de 10 semanas, a revogação do período de reflexão obrigatório de três dias e a garantia de acesso efetivo à IVG em todas as regiões do país.
Segundo a Entidade Reguladora da Saúde, só em 2024, o número de mulheres que recorreram ao aborto até às 10 semanas aumentou 5,5%, totalizando quase 18 mil casos — um sinal, segundo a AI, da urgência em remover os entraves legais e logísticos que continuam a limitar este direito reprodutivo em Portugal.